quinta-feira, 18 de janeiro de 2018

Direitos dos animais e de outros seres vivos? O problema da titularidade de direitos fundamentais para além da pessoa humana

Levando em conta o avanço significativo das discussões em torno da tutela constitucional do meio ambiente, a superação de uma perspectiva prevalentemente antropocêntrica, bem como o crescente reconhecimento, inclusive pelo direito constitucional (e infraconstitucional) positivo, de uma tela constitucional específica dos animais, tanto no direito internacional, quando no direito comparado e brasileiro (a CF, no seu art. 225, inc. VII, contém dispositivo expresso impondo a proteção da fauna e da flora), coloca-se o debate em torno da atribuição da titularidade de direitos fundamentais a outros sujeitos que não os humanos, havendo inclusive quem - e já há certo tempo - defenda a existência de direitos dos animais, similares aos direitos da pessoa humana. Neste contexto, embora o direito constitucional positivo não reconheça direta e expressamente direitos fundamentais como direitos subjetivos aos animais, no sentido de serem estes titulares de direitos desta natureza, o reconhecimento de que a vida não-humana possui uma dignidade, portanto, um valor intrínseco e não meramente instrumental em relação ao Homem, já tem sido objeto de chancela pelo Direito, e isto em vários momentos, seja no que concerne à vedação de práticas cruéis e causadoras de desnecessário sofrimento aos animais, seja naquilo em que se veda práticas que levem à extinção das espécies, e não pura e simplesmente por estar em risco o equilíbrio ecológico como um todo, que constitui outra importante (mas não a única) razão para a tutela constitucional, pelo menos tal qual previu o constituinte brasileiro. Certo é que mesmo a prevalecer a tese de que não há como atribuir aos seres vivos não-humanos, especialmente aos animais, na condição de seres sensitivos, a titularidade de direitos humanos, o reconhecimento da fundamentalidade (e mesmo dignidade!) da vida para além da humana implica pelo menos a existência de deveres - fundamentais - de tutela (proteção) desta vida e desta dignidade. Ainda que não haja consenso a respeito da matéria, especialmente sobre se o que existe é apenas uma tutela jurídico-objetiva da vida não-humana, ou se existe uma titularidade subjetiva de direitos fundamentais, que apenas não poderiam ser exercidos "pessoalmente", no plano processual, pelos seus titulares, o fato é que já existem diversas decisões judiciais, inclusive do STF, reconhecendo, como decorrência também do direito fundamental a um meio ambiente saudável e dos dispositivos constitucionais versando sobre a proteção da fauna, a necessária proteção dos animais, ainda que em detrimento do exercício de determinados direitos ou interesses de pessoas ou grupos humanos.



(Trecho extraído do livro: A Eficácia dos Direitos Fundamentais - 11ª edição - Autor: Ingo Wolfgang Sarlet - Livraria do Advogado Editora)

Pessoas jurídicas como titulares de direitos fundamentais

Diversamente de outras Constituições, como é o caso da Lei Fundamental da Alemanha (art. 19, III) e da Constituição da República Portuguesa de 1976 (artigo 12.2), a CF não contém cláusula expressa assegurando a titularidade de direitos fundamentais às pessoas jurídicas (ou entes coletivos, como preferem alguns) o que, todavia, não impediu a doutrina e jurisprudência de reconhecerem, de forma tranquila, tal possibilidade, ressalvada alguma discussão sobre determinadas hipóteses e eventuais limitações decorrentes da condição de pessoa jurídica. Da mesma forma, recepcionada no direito constitucional brasileiro a tese de que as pessoas jurídicas, ao contrário das pessoas naturais (físicas ou singulares) não são titulares de todos os direito, mas apenas daqueles direitos que lhes são aplicáveis por serem compatíveis com a sua natureza peculiar de pessoa jurídica, além de relacionados aos fins da pessoa jurídica, o que, todavia, há de ser verificado caso a caso. Neste particular, também ao direito constitucional brasileiro é aplicável, segundo entendimento aqui adotado, a lição de Jorge Miranda, no sentido da inexistência de uma equiparação entre pessoas jurídicas e naturais, visto que se trata, em verdade, de uma espécie de cláusula (no caso brasileiro, de uma cláusula implícita) de limitação, designadamente de limitação da titularidade aos direitos compatíveis com a condição de pessoa jurídica.

Ainda no que diz o tópico ora versado, verifica-se não serem muitos os casos em que a CF expressamente atribuiu a titularidade de direitos fundamentais às pessoas jurídicas (art. 5º, XXI, art. 8º, III, art. 17, especialmente §§ 1º e 3º, art. 170, IX, art. 207, entre outros), havendo mesmo quem, propondo uma interpretação mais restritiva e apegada ao texto constitucional, no sentido de que na falta de previsão constitucional expressa os direitos da pessoa jurídica, embora reconhecidos por lei, não gozam de proteção constitucional, podendo o legislador infraconstitucional introduzir as limitações que considerar necessárias, inclusive diferenciando o tratamento das pessoas jurídicas e físicas. Tal posição mais restritiva não corresponde, contudo, ao que parece ser a orientação majoritária - aqui também adotada -, inclusive por parte do STF, prevalecendo a regra geral de que, em havendo compatibilidade entre o direito fundamental e a natureza e os fins da pessoa jurídica, em princípio (prima facie) reconhecida a proteção constitucional, o que, por outro lado, não impede que o legislador estabeleça determinadas distinções ou limitações, sujeitas, contudo, ao necessário controle de constitucionalidade. Convém não esquecer, nesta perspectiva, que a extensão da titularidade de direitos fundamentais às pessoas jurídicas tem por finalidade maior a de proteger os direitos das pessoas físicas, além do que em muitos casos é mediante a tutela da pessoa jurídica que se alcança uma melhor proteção dos indivíduos.

Ainda no que diz com a fundamentação jurídico-constitucional do reconhecimento, por parte das pessoas jurídicas, da titularidade de direitos fundamentais, vale agregar, aos argumentos já colacionados, a lição de Benito Aláez Corral, no sentido de que, em larga medida, os próprios grupos sociais (os entes coletivos) são o resultado do exercício, por parte do indivíduo, de determinados direitos fundamentais, como é o caso de reunião e associação, cujo objeto somente pode ser assegurado de forma adequada se aos entes coletivos correspondentes for atribuída a titularidade de direitos fundamentais.

Questão bem mais controversa diz com a atribuição de titularidade às pessoas jurídicas de direito público, visto que, em regra, consideradas destinatárias da vinculação dos direitos fundamentais, na condição de sujeitos passivos da obrigação de tutela e promoção dos direitos fundamentais, de tal sorte que, em termos gerais, as pessoas jurídicas de direito público tem sido recusada a condição de titulares de direitos fundamentais. Todavia, considerando, especialmente em se tratando de um Estado Democrático de Direito, tal qual consagrado pela nossa Constituição, que o Estado e a Sociedade não são setores isolados da existência sociojurídica, sendo precisamente no amplo espaço do público que indivíduo logra desenvolver livremente sua personalidade, designadamente por meio de sua participação comunitária, viabilizada em especial por meio dos direitos políticos e dos direitos de comunicação e expressão, não há como deixar de reconhecer às pessoas jurídicas de direito público evidentemente consideradas as peculiaridades do caso, a titularidade de determinados direitos fundamentais.

Com efeito, a exemplo do que tem sido reconhecido no âmbito do direito comparado, onde o tema tem alcançado certa relevância, também no direito constitucional brasileiro é possível identificar algumas hipóteses atribuindo a titularidade de direitos fundamentais às pessoas jurídicas de direito público, o que se verifica especialmente na esfera dos direitos de cunho processual (como o de ser ouvido em Juízo, o direito à igualdade de armas - este já consagrado no STF - e o direito à ampla defesa), mas também alcança certos direitos de cunho material, como é o caso das Universidades (v. a autonomia universitária assegurada no art. 207 da CF), órgãos de comunicação social (televisão, rádio, etc.), corporações profissionais, autarquias e até mesmo fundações, que podem, a depender das circunstâncias, ser titulares do direito de propriedade, de posições defensivas em relação a intervenções indevidas na sua esfera de autonomia, liberdades comunicativas, entre outros.

Ainda que não de modo generalizado e a despeito da controvérsia registrada a respeito deste ponto, especialmente no direito constitucional comparado, também aos entes despersonalizados e a determinadas universalidade é de ser atribuída a titularidade de determinados direitos fundamentais, como dão conta os casos da sucessão, da família, entre outros.  Da mesma forma, digno de nota é o caso do povo judeu ou mesmo outros povos e nações (curdos, armênios, etc.), aos quais é possível atribuir a titularidade de direitos fundamentais, como o direito à honra e a sua reparação.

(Trecho extraído do livro: A Eficácia dos Direitos Fundamentais - 11ª edição - Autor: Ingo Wolfgang Sarlet - Livraria do Advogado Editora)