O Direito divide, no fundo, os fatos, atos, condutas, em lícitos ou ilícitos. Mesmo quando se omite de regular determinadas matérias ou situações, o direito demarca o campo do lícito e do ilícito, porque determina que dados comportamentos são permitidos, vez que não proibidos. Desde a própria Constituição Federal, o que não está proibido por lei, é considerado permitido. É claro que, em matéria de função pública, só se pode fazer o que a lei permite ou autoriza. Todavia, no mesmo âmbito da função pública, para punir alguém, com sanção administrativa, é necessário lei fixando os limites da conduta proibida e a sanção, o que chamamos de tipicidade, correlata à legalidade do Direito Punitivo.
A função garantista do tipo consiste, pois, em assegurar transparência ao poder punitivo estatal e, ademais, segurança jurídica à pessoa humana e àqueles que podem ser atingidos pelo Direito Administrativo Sancionador, ou seja, inclusive às pessoas jurídicas, cujas vontades são comandadas, todavia, por seres humanos.
Sem embargo, o campo do lícito pode estar presente em situações, fatos, atos, condutas formalmente proibidas. Pelo princípio de unidade do ordenamento jurídico, sabe-se que um comportamento não pode, um só tempo, ser proibido e permitido pelo Direito. Seria uma intolerável contradição geradora de grave insegurança jurídica. Daí que se revela possível um comportamento ser formalmente proibido e, ao mesmo tempo, permitido. Não haverá, aí, contradição? A resposta é negativa, porque o resultado final é a permissão da conduta. Disso decorre que existe uma interdependência das distintas esferas do ordenamento jurídico relativamente à licitude ou ilicitude de um só comportamento. A visão sistêmica do Direito é que permite visualizar o sentido total da proibição.
Em realidade, a formal proibição do comportamento se dá com um sentido de demarcar um caminho ao intérprete, até mesmo em decorrência da funcionalidade geral dos textos e dispositivos, no iter de produção das normas. A reprovação formal, emanada do dispositivo, sinaliza um indicador de proibição, marcado por indício de ilicitude. A reprovação jurídico-administrativa é mais ampla do que a tipificação formal, eis que envolve uma análise global do ordenamento jurídico, com múltiplas interfaces de normas e sujeitos, inclusive transcendendo o ordenamento administrativo propriamente dito, eis que pode haver interfaces mais profundas com outras disciplinas jurídicas.
Objetivamente visualizada, a reprovação depende, além do juízo de adequação típica, de um juízo de ilicitude, que se opera a partir da inexistência de causas justificatórias ao comportamento do agente. Essas causas podem advir de várias vertentes, não raro produzidas por normas oriundas de distintas disciplinas jurídicas. Esse juízo de reprovação do ordenamento jurídico é fruto de um exame global da conduta do agente à luz das leis que integram o sistema no qual inserido o problema objeto de exame pelo intérprete. Uma norma proíbe, mas outra autoriza, em face de excepcionais circunstâncias ou em razão de decisões proferidas por distintas autoridades estatais. É possível que tal fenômeno ocorra, especialmente no Estado brasileiro, em que as autoridades nem sempre se comunicam e se interligam nas suas decisões. Daí o sujeito terá atuado licitamente, dentro do quadro de legalidade permissiva, desde que amparado por normas estatais.
O plano da licitude ou ilicitude ocorre no âmbito global do ordenamento jurídico. Não se trata, ainda, de passar ao exame da aplicação da norma sancionadora ao comportamento proibido. Em verdade, trata-se de excluir, abstratamente, um juízo de tipicidade permissiva, a própria proibição.
A tipicidade permissiva é posterior à tipicidade proibitiva, no raciocínio jurídico, mas possui o efeito inverso e com idêntico grau de validez e eficácia: exclui a proibição.
(Fábio Medina Osório - Direito Administrativo Sancionador - Editora RT)