sexta-feira, 19 de março de 2010

PRINCÍPIO DA RESERVA DO POSSÍVEL


(...) Por mais que um mandamento legal tenha sido inserido no próprio Texto
Constitucional, ele somente poderá obter sua real efetividade na presença das condições
fáticas e jurídicas capazes de lhe conferir esta eficácia. Caso contrário, na ausência deste
contexto, por mais nobre que fosse o objetivo da norma, ninguém poderá ser obrigado a
cumprir suas diretrizes. Dessa forma, a escassez de meios econômicos pode limitar a
plena satisfação dos direitos sociais. Assim, a implementação destes direitos se torna
dependente da existência de condições materiais que permitam sua atendibilidade.
A teoria do princípio da reserva do possível tem como origem as decisões
proferidas pela Corte Constitucional Federal da Alemanha. O surgimento deste
posicionamento é encontrado na apreciação de um famoso caso (BverfGE n.º 33, S. 333
apud KRELL, 2002, p.52), no qual uma ação judicial então proposta visava a obter uma
decisão que permitisse a certo estudante cursar o ensino superior público. Tal pretensão
se baseava na garantia prevista pela Lei Federal alemã de livre escolha de trabalho,
ofício ou profissão, tendo em vista que não havia disponibilidade de vagas em número
suficiente para todos os interessados em freqüentar as universidades públicas (SARLET,
2001, n. 3). Neste caso, ficou estabelecido que só se pode exigir do Estado o
atendimento de um interesse, ou a execução de uma prestação em benefício do
interessado, desde que observados os limites da razoabilidade, destacando ainda a
Suprema Corte Germânica que os intitulados direitos sociais “estão sujeitos à reserva do
possível no sentido daquilo que o indivíduo, de maneira racional, pode esperar da
sociedade” (KRELL, 2002, p.52). Tal entendimento inviabilizaria que fossem
requeridas providências do Estado acima de um patamar logicamente razoável de
exigências sociais, razão pela qual restou afastada a lógica de que o Poder Público
estaria obrigado a disponibilizar um número ilimitado de vagas, para acolher todos os
interessados em ingressar nas universidades públicas.
Em outras palavras, o Poder Judiciário, por mais que tenha como objetivo de
conferir a devida aplicabilidade às normas inseridas na Carta Magna, não pode almejar
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suprir todas as carências sociais mediante a expedição de ordens judiciais, pois estas não
obterão a efetividade pretendida, haja vista que faltam condições materiais suficientes
para a sua concretização. Além disso, a satisfação de uns implica em negar o direito a
outros, em face da escassez de recursos.
Tal fato torna-se ainda mais grave quando se trata do campo da saúde, em que
uma decisão pode redundar em grande sofrimento ou mesmo em morte. Em tais
hipóteses, a alegação da reserva do possível, em uma análise superficial, pode parecer
cruel e desumana, mormente se visto no caso concreto. Sobre o tema, Gustavo Amaral
(2001) adverte que:
Diante de um quadro como esse, a tendência natural é fugir do problema,
negá-lo. Esse processo é bastante fácil nos meios judiciais. Basta observar
apenas o caso concreto posto nos autos. Tomada individualmente, não há
situação para a qual não haja recursos. Não há tratamento que suplante o
orçamento da saúde ou, mais ainda, aos orçamentos da União, de cada um dos
Estados, do Distrito Federal ou da grande maioria dos municípios. Assim,
enfocando apenas o caso individual, vislumbrando apenas o custo de cinco mil
reais por mês para um coquetel de remédios, ou de cento e setenta mil reais
para um tratamento no exterior, não se vê a escassez de recurso, mormente se
adotado o discurso de que o Estado tem recursos nem sempre bem empregados.
(AMARAL, 2001, pp.146-147).
Porém, os custos de tratamento na saúde tornaram-se insustentáveis para o
Estado quando tomados como um todo e, além da questão financeira, há recursos não
financeiros, como órgãos, pessoal especializado e equipamentos, que são escassos em
comparação com as necessidades.
Nesse quadro, tendo em vista que os direitos sociais não devem ter tratamento
diferenciado de outros direitos fundamentais, mas os recursos para o atendimento das
demandas são finitos, surgem os conflitos, nos quais se torna imperioso decidir sobre o
emprego de recursos escassos através de escolhas disjuntivas (o atendimento de uns e o
não-atendimento de outros). Tal conflito não é, em geral, tratado pela doutrina e mesmo
o critério de ponderação se revela insuficiente quando se tratam de prestações positivas.
Nesses casos, “não há como prestigiar o valor hierarquicamente superior, pois a
colisão pode ser entre o paciente que espera na fila para transplante apenas de rim, há
mais tempo, com o que espera na recém-criada fila para transplante duplo de rim e
pâncreas” (AMARAL, 2001, pp.126-127).
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Em sentido oposto, Andréas Krell (2002) afirma que o princípio da reserva do
possível consiste em uma falácia, decorrente de um Direito Constitucional comparado
equivocado, na medida em que a situação social brasileira não pode ser comparada
àquela dos países membros da União Européia (KRELL, 2002, pp.53-54). Segundo o
autor, no que diz respeito ao campo da saúde, a solução seria satisfazer todos os casos.
“Se os recursos não são suficientes, deve-se retirá-los de outras áreas (transportes,
fomento econômico, serviço da dívida) onde sua aplicação não está tão intimamente
ligada aos direitos mais essenciais do homem: sua vida, integridade e saúde. Um
relativismo nessa área poderia levar a ponderações perigosas e anti-humanistas do tipo
‘por que gastar dinheiro com doentes incuráveis ou terminais?’” (KRELL, 2002, p.53).
Nesse cenário, deve ser assegurado um padrão mínimo de segurança material à
população, já que o Estado Social não pode ser compelido a garantir um padrão “ótimo”
de bem-estar social, mormente quando se trata de prestações estatais obtidas via
judicial, mas sim a efetivar as condições para uma existência com dignidade. Porém, tal
afirmação não significa que a otimização do bem-estar social não possa ser uma meta a
ser alcançada.
Contudo, cumpre destacar que mesmo este patamar mínimo pode esbarrar na
escassez de recursos, ou seja, há a possibilidade do limite da reserva do possível, já que
também nestes casos poderá o Estado alegar e provar que não dispõe nem mesmo dos
recursos para atender às exigências mínimas em saúde, educação, assistência social,
segurança, etc. Em outras palavras, o seu cumprimento pode ser negado por parte do
Estado somente temporariamente em virtude de uma impossibilidade material evidente
e comprovável (BARROSO, 1996, p.111).
Além do enfoque na necessidade, ou essencialidade, da prestação, a
excepcionalidade da situação concreta deveria ser analisada, uma vez que, por exemplo,
um cataclismo, natural ou social, pode momentaneamente tornar inexigível algo que
pouco antes o era. O grau de essencialidade está ligado ao mínimo existencial, à
dignidade da pessoa humana e, em conseqüência, quanto mais essencial for a prestação,
mais excepcional deverá ser o motivo para que ela não seja acolhida. Dessa forma,
haverá uma ponderação dessas duas variáveis. Se o grau de essencialidade superar o de
excepcionalidade, a prestação deve ser entregue, caso contrário, a recusa estatal será
legítima (AMARAL, 2001, pp. 214 ss.).

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