Uma das decorrências da caracterização de um Estado como Estado de direito encontra-se no prncípio da legalidade que informa as atividades da Administração Pública. Na sua concepção originária, esse princípio vinculou-se à separação de poderes e ao conjunto de idéias que historicamente significaram oposição às práticas do período absolutista. No conjunto dos poderes do Estado, traduzia a supremacia do Poder Legislativo em relação ao Poder Executivo; no âmbito das suas atuações, exprimia a supremacia da lei sobre os atos e medidas administrativas. Mediante a submissão da Administração à lei, o poder tornava-se objetivado; obedecer à Administração era o mesmo que obedecer à lei, não à vontade instável da autoridade. Daí um sentido de garantia, certeza jurídica e limitação do poder contido nessa concepção do princípio da legalidade administrativa.
Embora permaneçam o sentido de poder objetivado pela submissão da Administração à legalidade e o sentido de garantia, certeza e limitação do poder, registrou-se evolução na idéia genérica da legalidade. Alguns fatores dessa evolução podem ser apontados de modo sucinto. A própria sacralização da legalidade produziu um desvirtuamento denominado legalismo ou legalidade formal, pelo qual as leis passaram a ser vistas como justas por serem leis, independentemente do conteúdo. Outro desvirtuamento: formalismo excessivo dos decretos, circulares e portarias, com exigências de minúcias irrelevantes. Por outro lado, com as transformações do Estado, o Executivo passou a predominar sobre o Legislativo; a lei votada pelo Legislativo deixou de expressar a vontade geral para ser vontade de maiorias parlamentares, em geral controladas pelo Executivo. Este passou a ter ampla função normativa, como autor de projetos de lei, como legislador por delegação, como legislador direto (por exemplo, ao editar medidas provisórias), como emissor de decretos, portarias e cirulares que afetam direitos. Além do mais, expandiram-se e aprimoraram-se os mecanismos de controle de constitucionalidade das leis.
Ante tal contexto, buscou-se assentar o princípio da legalidade em bases valorativas, sujeitando as atividades da Administração não somente à lei votada pelo Legislativo, mas também aos preceitos fundamentais que norteiam todo o ordenamento. A Constituição de 1988 determina que todos os órgãos da Administração obedeçam ao princípio da legalidade (caput do art. 37); a compreensão desse princípio deve abranger a observância da lei formal, votada pelo Legislativo, e também dos preceitos decorrentes de um Estado Democrático de Direito, que é o modo de ser do Estado brasileiro, conforme reza o art. 1º, caput da Constituição; e, ainda, deve incluir a observância dos demais fundamentos e princípios de base constitucional. Além do mais, o princípio da legalidade obriga a Administração a cumprir normas que ela própria editou.
Significado Operacional
O princípio da legalidade traduz-se de modo simples, na seguinte fórmula: 'A Administração deve sujeitar-se às normas legais'. Essa aparente simplicidade oculta questões relevantes quanto ao modo de aplicar, na prática, esse princípio.
Tornaram-se clássicos os quatro significados arrolados pelo francês Eisenmann: a) a Administração pode realizar todos os atos e medidas que não sejam contrários à lei; b) a Administração só pode editar atos ou medidas que uma norma autoriza; c) somente são permitidos atos cujo conteúdo seja conforme a um esquema abstrato fixado por norma legislativa; d) a Administração só pode realizar atos ou medidas que a lei ordena fazer.
O último significado - a Administração só pode realizar atos ou medidas que a lei ordena -, se predominasse como significado geral do princípio da legalidade, paralisaria a Administração, porque seria necessário um comando legal específico para cada ato ou medida editados pela Administração, o que é inviável. Há casos em que a norma ordena à Administração realizar uma atividade, como, por exemplo, a lei que estabelece o prazo de sessenta dias para a Administração regulamentá-la - ao baixar o regulamento no prazo fixado, a Administração estará editando ato que a lei ordenou realizar.
O terceiro significado - somente são permitidos atos cujo conteúdo seja conforme a uma hipótese abstrata fixada explicitamente por norma legislativa traduz uma concepção rígida do princípio da legalidade e corresponde à idéia de Administração somente executora da lei. Hoje não mais se pode conceber que a Administração tenha só esse encargo. Esse significado do princípio da legalidade não predomina na maioria das atividades administrativas, embora no exercício do poder vinculado possa haver decisões similares a atos concretizadores de hipóteses normativas abstratas.
O segundo significado exprime a exigência de que a Administração tenha habilitação legal para adotar atos e medidas - desse modo, a Administração poderá justificar cada uma de suas decisões por uma disposição legal, exige-se base legal no exercício dos seus podres. Esta é a fórmula mais consentânea com a maior parte das atividades da Administração brasileira, prevalecendo de modo geral. No entanto, o significado contém gradações: a habilitação legal, por vezes, é somente norma de competência, isto é, norma que atribui poderes para adotar determinadas medidas, ficando a autoridade com certa margem de escolha no tocante à substância da medida; por vezes, a base legal expressa um vínculo estrito do conteúdo do ato ao conteúdo da norma ou às hipótese aí arroladas.
Em geral, nas medidas de repercussão mais forte nos direitos dos cidadãos, há vinculação mais estrita da medida administrativa ao conteúdo da norma.
Deve-se lembrar também que, para muitas matérias, a Constituição Federal, as constituições estaduais e as leis orgânicas de municípios exigem a disciplina por lei formal, ou seja, por lei que deverá necessariamente resultar de tramitação no Legislativo. É a chamada reserva de lei - por exemplo, o art. 68, §1º, II da CF veda que o Legislativo delegue nas matérias relativas à nacionalidade, cidadania, direitos individuais, políticos e eleitorais.
O sentido do princípio da legalidade não se exaure com o significado de habilitação legal. Este deve ser combinado com o primeiro significado, com o sentido de ser vedado à Administração editar atos ou tomar medias contrárias às normas do ordenamento. A Administração, no desempenho de suas atividades, tem o dever de respeitar todas as normas do ordenamento. (grifamos)
(Odete Medauar in Direito Administrativo Moderno - 13ª edição - Editora Revista dos Tribunais)