terça-feira, 15 de abril de 2014

Proteção da confiança e boa-fé...

A proteção da confiança e a boa-fé possuem notável intimidade. A rigor, o desenvolvimento da boa-fé objetiva, sobretudo no direito privado, mediante confessada influência do direito alemão, é um dos fatores principais da renovação do direito das obrigações brasileiro. Seu desenvolvimento promoveu em primeiro lugar, uma distinção entre duas espécies de boa-fé, uma de índole subjetiva, outra objetiva. A boa-fé subjetiva dá conta de um estado psicológico, anímico do indivíduo, caracterizado pela ausência da intenção dolosa de prejudicar ou obter algo indevido, bem como a ausência de conhecimento sobre determinadas circunstâncias. Serve, de regra, como suporte fático para incidência de normas protetivas  deste estado de boa-fé, como ocorre, no direito privado, em relação ao possuidor de boa-fé. Já a boa-fé objetiva, por outro lado, caracteriza-se como padrão de conduta, externo ao sujeito, e cuja conformidade indica o espaço  de regular atuação individual. A boa-fé objetiva, segundo conhecidas palavras de Josef Esser, abre as janelas para o ético, na medida em que impõe deveres de lealdade, respeito e colaboração entre os sujeitos de uma dada relação jurídica, do que decorre a proteção das expectativas legítimas geradas pelo comportamento das partes. Também serve, conforme doutrina afirmada, como limite ao exercício de prerrogativas jurídicas e como critério para interpretação e integração dos negócios jurídicos.
Em grande medida, a proteção da confiança tem na boa-fé um princípio que lhe concretiza. Contudo, não se confundem. A eficácia do princípio da boa-fé objetiva é um dos modos de proteção da confiança legítima, em especial porque operando prioritariamente no âmbito das relações intersubjetivas, protege as expectativas legítimas geradas nas partes em razão da conduta negocial da outra. Mas mesmo no direito privado, a proteção da confiança não se resume à operabilidade do princípio da  boa-fé objetiva, senão que crescentemente vem se desenvolvendo também pela consagração dos outros institutos como a vedação do abuso do direito (agregando à boa-fé a proteção dos bons costumes e dos fins econômicos ou sociais do direito), da probidade, da função social, dentre outros.
Conforme bem observa Carneiro de Frada, "a tutela das expectativas mediante a regra da boa-fé é apenas reflexa. Revela somente no quadro das exigências de probidade e equilíbrio de conduta que aquela veicula. São estas que conferem o fundamento da proteção concedida. Na mesma linha de entendimento, Rafael Maffini observa que a boa-fé objetiva opera no âmbito dos comportamentos reciprocamente leais entre a Administração Pública e o administrado. A proteção da confiança, de sua vez, resulta mais ampla, decorrente da imposição da segurança jurídica e, nesta linha de entendimento, do Estado de Direito. Já o magistério de Judith Martins Costa, "o princípio da confiança", desdobra-se nos mandamentos de agir, segundo a boa-fé e a lealdade - estes há muito objeto das reflexões do direito privado - e da moralidade pública."
A proteção da confiança no direito administrativo, como decorrência do princípio do Estado de Direito, resulta na proteção das expectativas legítimas dos administrados em relação à ação administrativa, e na medida em que confiam no comportamento do Poder Público, decorre de eventual frustração deste comportamento, a responsabilidade da Administração. Assim se dá nas situações típicas que, informadas pelo princípio da boa-fé objetiva, resultam paralisar ou mitigar os efeitos da conduta contrária à confiança despertada, como é o caso da proibição do comportamento contraditório (venire contra factum proprium), a supressio, a surrectio e a tu quoque. Contudo, é de se observar que confluem para o princípio da proteção da confiança, igualmente, outros princípios jurídico-administrativos, como é o caso da moralidade, da impessoalidade, da publicidade e, mesmo, o da eficiência, indicando à proteção da confiança tanto a proteção de uma situação subjetiva individual, de crença em dado estado de fato, como igualmente uma confiança na estabilidade e regularidade da ação do Poder Público, porquanto a posição do Estado é a mais elevada dentre as atinentes ao respeito, aplicação e eficácia do Direito.
A falta de consagração expressa do princípio da proteção da confiança em diversos sistemas, no entanto, leva a que se utilize diretamente o princípio da boa-fé para a proteção de situações decorrentes da proteção da confiança nas relações entre a administração Pública e o indivíduo.  No direito espanhol, por exemplo, a falta de recepção formal do princípio da confiança fomentou a utilização do dever de boa-fé, expressamente consagrado na parte preliminar do Código Civil, para preservação dos interesses legítimos dos administrados. Com a crescente utilização de ambos os princípios pela jurisprudência, passa a afirmar-se uma distinção que prefere a alusão à confiança na medida em que se trate de relações decorrentes de modificações legislativas; e à boa-fé quando se tratar de relações diretamente estabelecidas entre o indivíduo e a administração.
No direito brasileiro, embora nem sempre se estabeleçam - em especial na jurisprudência - distinções mais elaboradas entre a proteção da boa-fé e da confiança legítima, deve se reconhecer que o princípio da proteção da confiança tem na boa-fé um de seus principais elementos de operabilidade, em especial no tocante à precisão dos deveres a que se submete o Estado em suas relações com os particulares.
 
(Trecho extraído do livro A nova administração pública e o direito administrativo - Bruno Miragem - Thomson Reuters Revista dos Tribunais)