terça-feira, 26 de abril de 2011

Constituição Dirigente

...Em primeiro lugar, é preciso esclarecer a seguinte questão: a Constituição dirigente era um projecto da modernidade, um projecto de transformação, um projecto com sujeitos históricos (até em termos hegelianos), sujeitos que, no caso da Constituição portuguesa, eram os trabalhadores, as classes trabalhadoras, o Movimento das Forças Armadas.

Esses sujeitos históricos desapareceram do texto e passaram a ter, digamos, uma influência menos nítida no processo de transformação inicial. Isto era logo visível no que toca às Forças Armadas; também as clases trabalhadoras, enquanto sujeitos históricos, foram eliminadas do texto: não foram eliminadas da vida real, mas foram eliminadas do texto.

Tomemos então a Constituição dirigente como um projecto cristalizado, positivado, de uma revolução que se fez, que tinha de se fazer. Isso significava também que tinha os seus sujeitos históricos identificados no texto constitucional. Neste sentido, a Constituição dirigente é um produto acabado de um projecto de modernidade, quer em termos de sujeito histórico, quer em termosde homem triunfante na sua capacidade de trasnformação. Assim entendida, a Constituição dirigente enfrentou grandes dificuldades, resultantes dos ataques das correntes mas conservadoras, mas também das críticas de alguns normativismos sociológicos (caso do Direito Alternativo e de algumas correntes mais pós-modernas que acreditam pouco numa directividade normativa, numa directividade do centro, acreditam mais num esquema difuso).

Quer queiramos quer não, quanto a essa Constituição dirigente temos que ser humildes e dizer que ela acabou. Mas isto não pode significar que não sobrevivam algumas dimensões importantes da programacidade constitucional e do dirigismo constitucional.

Em primeiro lugar, em termos jurídico-programático, uma Constituição dirigente - já explicitei isso várias vezes - representa um projecto histórico pragmático de limitação dos poderes de questionar do legislador, da liberdade de conformação do legislador, de vinculação deste aos fins que integram o programa constitucional. Nesta medida, pensa que continuamos a ter algumas dimensões de programaticidade: o legislador não tem absoluta liberdade de conformação, antes tem de mover-se dentro do enquadramento constitucional. Esta a primeira sobrevivência da Constituição dirigente em termos jurídico-programáticos.

Uma outra dimensão desta sobrevivência liga-se à segunda parte da pergunta do Professor Eros Grau, que quer saber se não estou a deslocar a directividade do texto onstitucional interno, do texto constitucional nacional, para o plano internacional, para o plano supranacional. A este propósito, penso que as Constituições nacionais, agrade-nos ou não esta ideia, estão hoje em rede. Em termos de inter-organizatividade, elas vêm 'conversando' com outras Constituições e com esquemas organizativos supranacionais, vão desbancando algumas normas, alguns princípios das próprias Constituições nacionais. Neste aspecto, pode falar-se de fraqueza das Constituições nacionais: quem passa a mandar, quem passa a ter poder são os textos internacionais. Mas a directividade programática permanece, transferindo-se para estes.

Há uma outra dimensão que me dá alguma tranquilidade. Quando, por exemplo, se dizia no texto constitucional que era preciso assegurar a igualdade real entre os portugueses, a igualdade entre homes e mulheres, a coesão nacional, diziam alguns: ' isto é programaticidade, isto é um aleluia jurídico, isto não tem vinculatividade.' Pelo simples facto de estarem consagrados na Constituição da República Portuguesa - suspeita em termos ideológicos - não faltaram vozes a considerar aqueles objectivos como um entulho programático, sem qualquer força vinculativa.

Agora, quando esses mesmos objectivos constam de tratados internacionais, toda a gente vem dizer que é preciso levá-los a sério, dada a imperatividade e normatividade das cláusulas dos Tratados que apontam para a igualdade entre homens e mulheres. Agora, aquelas mesmas vozes reconhecem e sublinham a imperatividade dos textos que apontam para a igualdade real e para a coesão econômica e social. E não discutem a imperatividade do Tratado de Amsterdam quando consagra direitos sociais dos trabalhadores.

Nesta perspectiva é que eu afirmei existir uma certa deslocação: a imperatividade desloca-se do texto constitcuional para os estatutos de organizações supranacionais. Mas é claro que permanece sempre o problema final; por que razão esta dimensão normativa, este programa, tem uma maldade congênita quando está consgrado numa Constituição nacional, e tem uma bondade natural quando resulta de um tratado internacional? Por que razão é bom "fora-de-portas" e é mau 'intra-muros"?

Este é o problema que eu queria focar quando me referi a esta deslocação de directividade para o plano internacional, e este problema está em aberto. [...]


(J.J. Gomes Canotilho, in Canotilho e a Constituição Dirigente, Ed. Renovar, 2003)

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